Gênero: Doom Metal, Progressive Metal
1. Cerimônia
2. Indulgência
3. Trono
4. Oran - Instrumental
5. Desdém
6. Sazonal
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Ele vem de uma São Paulo pandêmica, dos idos de 2021. Dois anos depois, o Lótico chegou a lançar dois singles esporádicos até que, no final do terceiro trimestre, decidiu anunciar seu primeiro álbum de estúdio. Intitulado Oran, o material é resultado da coleta de músicas compostas entre outubro de 2021 e fevereiro de 2023, e colocadas sob gravação entre junho e agosto deste ano.
O vento uiva enquanto passa pelo ambiente inóspito. Entre os rochedos e o chão de terra batida, uma fresta de luz, ao longe, é avistada. Apesar desse prelúdio de incitação de nervosismo, o céu que o abriga causa um acalentador estado de tranquilidade e proteção. Límpido e entre estrelas de brilhos quase incandescentes, ele, oferecendo uma noite cristalina, derruba pitadas de uma psicodelia extasiante envoltas em um estado de torpor quase transcendental. Graças à sincrônica maciez mística existente entre as guitarras de Leonardo Passos e Pedro Ferreira, e o sonar floral do sintetizador de Guilherme Xavier, a introdução de Cerimônia assume denso caráter esotérico. Ganhando corpulência, mas sem qualquer sinal de gordura, a partir do baixo de Bruno Araújo, a melodia assume voos mais baixos, mas ainda de intensa suavidade, enquanto passa a divulgar notas levemente estridentes. Com a entrada da bateria de Juliana Lellis, Cerimônia passa a soar como uma marcha ao além-vida, uma caminhada serena à dimensão espiritual. Sem sobreaviso, a calmaria avassaladora tem sua estrutura rompida por um rugido áspero vindo da guitarra de Xavier. A partir dela, um post-rock de caráter metalizado, sujo e estridente, tal como o stoner rock, mas que consegue introduzir, também, raspas de nu metal e metal alternativo, se soma à receita melódica da canção, que finaliza com a esfera rítmico-melódica completa com a entrada do vocal. Com versos curtos e de verbalização repetitiva, Passos acrescenta seu vocal áspero e gutural enquanto define o verdadeiro sentido da canção, que é, em sua esmagadora parte, um instrumental, um prelúdio de torpor e alucinação que se transforma em desespero.
A cenografia é torturante. Um indivíduo é visto, sentado e amarrado a uma cadeira, ao centro de uma sala de iluminação sintética. Amordaçado, ele, em um estado de alucinação psicótica, lança olhares que comunicam o ápice de um prazer sádico e sadomasoquista. Por meio do revesamento entre o grave gutural e o sereno simultaneamente rasgado e desesperado, Passos e Araújo fazem de Indulgência uma verdadeira e contagiante desesperança. Umbralina, suja e metalizada, a canção é amarrada por um baixo de forte estridência que, além de fornecer a pressão, dá voz à agonia de um indivíduo engolido pela sua própria desconfiança exagerada perante a vida. Entrando em um estado de profundo questionamento de crenças, o personagem se vê entre críticas à má-fé associada à manipulação religiosa que o coloca em uma condição de espírito perdido, confuso e imbuído em uma dependência inquebrável de culpa e sofrimento.
A união entre guitarras e baixo traz um suspense curioso. Não há injeção de medo ou alerta, mas ele oferece uma conotação de amaciada expectativa pelo que pode ocorrer além das montanhas. Essa sinistres de toques sutilmente esotéricos, como previsto, termina em uma queda livre rumo ao brutal. A partir do lirismo extravasado por um timbre áspero e gutural, existe um toque de caótico desolamento enquanto Trono se matura por meio de uma base adornada por generosa dose de dramaticidade. Obscura e densa, a faixa apresenta um personagem sem luz, sem vitalidade e sem motivação para continuar a jornada da vida. É quase como um morto vivo, caminhando a passos lentos e doloridos, em direção a lugar nenhum. Tudo em virtude da decepção e da raiva incentivadas pela consumação da esperança e pela ausência de empatia.
Flutuante, entorpecente e embriagante. É como estar em um sonho, caminhando com auxílio de uma cúpula que abafa qualquer tipo de som. Nesse devaneio consciente, o espectador caminha por cenários de caos irreversíveis e inevitáveis. Incêndios, enchentes, guerras. O apocalipse sendo observado sem qualquer possibilidade de impedimento. Entre o mundo astral e o carnal, o futuro é visto, mas pouco estudado em vista do estado de normalidade absoluta de vidas comuns em rotinas ordinárias. Isso é a faixa-título.
De despertar linear em relação ao fim do interlúdio que foi a faixa-título, o torpor segue seu caminho com fraqueza, até que se dissipa e um breve silêncio surge. Rompido por um transtornado grito ríspido, ele se transforma em um ambiente denso, dramático e lancinante baseado no extenso emprego de bumbos duplos. Com intermitências perante o torpor e o preciso, Desdém surpreende ao trazer um verso puramente narrativo e melodramático em que o ouvinte pode degustar mais profundamente o timbre de Araújo. De uma doçura gélida, seu vocal surge, aqui, com tom agoniante, desesperado e descrente. Desdém é um verdadeiro monólogo sonorizado que traz a relação do personagem com o luto em meio a uma manipulativa libido mórbida que evidencia o embate entre desejo de esquecer e o medo de repetir a sensação de ser e se sentir desprezado. Não à toa, Desdém é um melodrama lancinante embebido em uma mistura de metalcore e emocore.
O ecoar de um sonar oco, tal como aquele exalado pelas castanholas e pelo coquinho, dão uma textura que assume a forma de hipnotismo com o auxílio dos graves batuques da bateria. Curiosamente, o mesmo feito de Desdém se repete aqui, em Sazonal. Com uma voz empostada e grave, o timbre de Passos, em sua forma limpa e crua, pode ser melhor degustado pelo ouvinte, que se percebe cegamente manipulado pela cadência lírica e pela melodia hipnótica. Como outro monólogo ritmado sob as iniciais vestes do post-rock, Sazonal explora texturas enganosamente calmantes enquanto dialoga sobre o tempo, sobre amadurecimento. Sobre a morte do passado e as boas-vindas do presente. O quem fui ante o que sou. A autoaceitação.
É um produto de intensa experimentação de texturas, emoções e vivências. Oran é um disco que grita, que chora, que se apavora perante a possibilidade da anulação, do esquecimento. Tal como um rio congelado, o álbum, conforme se derrete e vai desenhando seu curso em filetes de água, ele é o caminho da vida feito entre sofrimento, angústia e desespero. A busca pela liberdade da dor e da desarmonia.
Cortante, ardido, agressivo e desesperado, Oran é um trabalho que, em sua receita, traz conceitos do progressivo, do folk e do esoterismo enquanto mistura o êxtase entorpecido da suavidade com o lancinante peso da brutalidade. Uma brutalidade confundida entre lágrimas ácidas de raiva, ódio, descrença e desolamento.
Estruturado entre a necessidade de salvação, de aceitação e de um alicerce místico de força interna, o álbum é capaz de fazer os olhos do ouvinte lacrimejarem em sintonia com as dores expressas em cada esquina sonora. Curioso, nesse diálogo, é a experimentação da libido e do torpor em duas faixas monólogas que extravasam o medo do desprezo e o desprendimento do passado.
Para dar voz a essa conjuntura de propostas líricas, Oran contou com o apoio de Igor Porto. A partir da sabedoria do profissional, o álbum teve uma sonoridade enfática, precisa e madura que, apesar dos melodramas, sobressai o bruto e o sujo. Por essa razão, emaranhados na receita melódica estão subgêneros como metalcore, emocore, stoner rock, lo-fi e o screamo. Tudo amarrado pelo post-rock na ânsia da experimentação de diferentes texturas.
Encerrando o escopo técnico do álbum, vem a arte de capa. Assinada por Damaged Design, ela é banhada por um tom azul-violeta enquanto ilustra, ao fundo, um cenário urbano. Dando a noção de um misto de torpor e melancolia, ela reflete o quão triste é a constância da normalidade de uma vida linear e programada tanto pelo relógio quanto pela rotina.
Lançado em 29 de setembro de 2023 de maneira independente, Oran é o ciclo da vida. O curso de uma vivência imbuída em sofrimento, desilusão, descrença e medo. Um medo que se alimenta da insegurança frente à própria identidade, do receio à rejeição e do temor do passado. É o desejo de liberdade transpirado em gritos de angústia e agonia.
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