O álbum se inicia com Cai a Chuva. É magnífico como a banda conseguiu casar bem as notas do sintetizador, soando como gotículas de água que tilintam dançando de um lado para o outro em nossos ouvidos. O refrão é torrencial e emblemático como a força das águas que arrastam o ouvinte por entre esta climática e cativante faixa de abertura. Uma música pra lá de imersiva e de diversas nuances que serão ainda mais perceptíveis quando o ouvinte estiver munido de bons fones de ouvido. Excelente início de audição! Uma levada quase hostil se aproxima com a chegada de Cuidado. Aqui o ouvinte consegue realmente sentir a repressão de uma grande e uma futurista cidade. Repressão pelo relato do vocalista Randal, e o futurismo provém da atmosfera sonora criada pelo grupo. Situação sufocante e opressora esta, que encontramos em nosso próprio cotidiano…
Midas começa com leves pitadas que me lembrou dos alemães do Rammstein, porém, com uma abordagem mais contida em quesito peso. O refrão consegue ser marcante e memorável, assim como as faixas anteriores. A letra da música pode sim ser encarada como uma narrativa sobre o mitológico rei da mitologia grega, cujas mãos, poderiam transformar tudo o que tocasse em ouro, uma “dádiva” concedida pelo deus Baco (o que assim como quase todas as histórias, o que se inicia como dádiva, acaba por se tornar uma maldição). Entretanto, busquei traçar um paralelo para nossa realidade atual, onde muitas pessoas que se dizem influentes por contas numerosas e estúpidas dancinhas nas redes sociais se colocam como seres perfeitos, capazes de sentirem superiores a tudo e a todos em um exercício máximo de narcisismo e soberba. No final, o que eles acham que se torna ouro, na verdade não passa de tolices ou coisas para lá de descartáveis. Uma pena que muitos indivíduos apreciem e idolatrem estes Midas do mundo moderno…
A quarta faixa Sonhos, traz a participação nos vocais de Natália Andrade e Priscila Santos. E meus amigos, temos aqui outra faixa incrível. Uma mescla entre aqueles clássicos eletrônicos dos anos 80 repletos de refrãos épicos, com uma levada, leve como uma pluma, de música oriental. Destaque aqui para o belíssimo solo de guitarra que, sem brincadeiras, brota ao final de uma passagem igualmente bela. Subliminar é soturna, trazendo toda aquela climatização de filmes de conspiração. Esse clima é abruptamente rompido pelo pesadíssimo ponto alto da canção, em mais uma amostra de como a banda consegue criar refrãos realmente cativantes (não à toa já os estou destacando até aqui). Destaco também, os versos geniais da letra escrita por Randal e Michel:
“Subliminar é o que você não vê, então comece a pensar, ser cego não é o ideal?”
Escuridão marca a chegada do ouvinte à metade do disco. Uma linda melodia de piano, quase infantil surge nos ouvidos do ouvinte. Mas com uma brutalidade sem igual, essa atmosfera inocente é arrancada abruptamente, dando lugar a um poderoso riff de guitarra, como se de fato representasse uma infestação das trevas. A temática da letra traz uma espécie de tentativa de flerte, buscando trazer a insólita união entre luz e sombra. E creio que é justamente esse vai e vem que fica ao se deparar com essa faixa. Um lado seu deseja que a melodia doce do refrão retorne (o que de fato acontece), mas o outro deseja que o riff mordaz também volte para que o bate cabeça continue.
Na sequência, Ele traz uma visão quase paradoxal indagando o ouvinte sobre o que ele considera ser a imagem de Deus. Uma reflexão para lá de pertinente, em tempos onde Cristo é utilizado como moeda de troca para obtenção de votos. Além da temática, a ambientação é outro ponto destacável, com o excelente uso de coros que dão à faixa um tom que une o tom clerical ao metal industrial. Yokai traz novamente a mescla perfeita entre a música oriental, o Synthwave e o peso das distorções das guitarras. A faixa é um grito de liberdade para aqueles que já sofreram qualquer tipo de preconceito, os encorajando assim, a esquecer os traumas do passado e seguir em frente sendo quem se realmente é. No folclore japonês, a figura dos Yokais são criaturas com poderes sobrenaturais ou espirituais, o que coloca o ouvinte em cheque sobre a seguinte questão: Será que as diferenças que nos cercam e as peculiaridades de cada individuo, não sejam os nossos próprios poderes?
Em Caronte, a banda assume o papel do icônico barqueiro da mitologia grega, convidando o ouvinte para um novo reino, onde os valores tanto filosóficos quanto religiosos não possuem o mesmo peso como em nosso mundo. Neste novo plano, não há submissão religiosa, não há castigo, muito menos sofrimento. A faixa, que junto a Cuidado, foi um dos primeiros singles divulgados do trabalho e transita muito bem entre o eletrônico e o Metal Industrial, ainda apresentando pitadas de vocais guturais em certas passagens, adicionando assim, mais um elemento inédito a audição de Sangar.
Mais traz uma espécie de convocação para um despertar social, onde cada indivíduo é capaz de escrever o próprio futuro se esgueirando por entre os destroços da existência e da vilania política, tornando-se assim um ser ávido pela evolução. Sangue Vitoriano é uma crônica vampiresca, trazendo a transformação de um mero mortal a vida eterna de uma criatura da noite. Outra faixa recheada de atmosferas e climatizações interessantíssimas criadas pela banda, com direito a referências ao clássico game Castlevania: Symphony of The Night (quem jogou ao menos um pouco do jogo encontrará a referência fácil).
A sequência com a última faixa A Deusa, traz novamente o contraste ente a luz e a escuridão, como um convite para uma última dança. Essa é uma belíssima balada, regada a sintetizadores e uma jura de fidelidade eterna a uma emblemática figura que surge nos sonhos do eu lírico da canção. Uma excelente forma de encerrar o registro. É com muito prazer que posso afirmar que Sangar do Militia, é um ótimo trabalho de estreia. Tudo no disco soa harmoniosamente original, em um grupo que não demonstra medo algum em explorar e criar atmosferas distintas, cativantes, opressoras e por algumas vezes até dançantes. E vai por mim amigo leitor, a cada nova audição este álbum lhe trará nuances novas que provavelmente não se percebem nos primeiros contatos.
A mixagem ainda consegue ser um feito excelente. Todos os elementos sintéticos e eletrônicos soam com uma fluidez e naturalidade única, digna de grandes bandas que se utilizam destes mesmos elementos, como New Order, Depeche Mode e afins. Já a utilização do português como idioma para as linhas vocais é primordial e auxilia ainda mais o ouvinte no quesito imersão.
Outro fator que tem de ser exaltado quase que à exaustão, é o capricho e o carinho que a banda aplica ao material tanto físico quanto o digital. Além das plataformas de streaming, Sangar está disponível em uma versão incrível em digipack (cuja identidade visual me remeteu muito aos clássicos Sci-Fi dos anos oitenta, como Blade Runner), assim como outros itens que podem ser adquiridos diretamente com a banda. Agradeço imensamente ao Randal por ter me mandado de prontidão o trabalho, após um pedido praticamente feito na “caruda”.
Em suma meus amigos, Sangar é uma ótima descoberta e minha última resenha neste final de ano. Adentre sem medo, a este rico universo sonoro, industrial, cyberpunk, enquanto por aqui, aguardo ansioso pelo que está por vir em um próximo disco do Militia!